Aos 33 anos, foi nomeado bispo. Sua rápida ascenção dentro da Igreja, o fez um dos mais jovens sacerdotes a vivenciar intensamente o Concílio Vaticano II. E de acordo com Dom Eugenio Sales (foto), foi justamente este Concílio o responsável pela revitalização da Igreja Católica. Além disso, teve presença marcante durante o regime militar ao acolher refugiados políticos como forma de defender a imagem de Deus. Dom Eugenio que está há 29 anos à frente da Arquidiocese do Rio de Janeiro, celebrou no dia 11 de novembro uma missa em ação de graças por seus 80 anos de vida na Catedral Metropolitana. Mas o tempo não é empecilho para o Cardeal-Arcebispo lembrar com entusiasmo do seu começo como sacerdote e sua estreita ligação com a terra. Durante a entrevista, Dom Eugenio Sales falou também sobre a importância do Papa João Paulo II para o mundo de hoje e o seu apoio ao movimento carismático.
Luiz Paulo Horta: O Senhor poderia falar um pouco de aspectos que marcaram a sua formação como sacerdote, como homem de Igreja?
Dom Eugenio: Eu sempre tive um interesse muito grande por agronomia; tanto assim que os meus primeiros trabalhos como sacerdote tinham a ver com essa questão do campo, agricultura, reforma agrária. Ainda hoje, são assuntos que me interessam muito. Também fui muito marcado pelo exemplo de meu pai, que era desembargador. Ele tinha um estilo muito sintético, seus despachos eram sucintos.
Luiz Paulo Horta: Estive lendo esses dias sobre o Concílio Vaticano II, sobre João XXIII. O Senhor viveu o período do Concílio. E aquilo foi um verdadeiro terremoto, às vezes se diz que foi uma outra Igreja que surgiu do Concílio. O Senhor concorda com isso?
Dom Eugenio: Não, era a mesma Igreja, da qual foi tirada a poeira do tempo. Depois que se tirou esse pó acumulado apareceu a beleza da Igreja, e ela saiu dali com uma vitalidade extraordinária. Eu participei de maneira muito intensa do Concílio (eu já era bispo aos 33 anos, dez anos depois de ser ordenado sacerdote), fui eleito para uma das comissões logo no início, eu era dos bispos mais novos. Fui o sétimo eleito, com uns 700 ou 800 votos. Eu rezava para não ser eleito. Mas aconteceu, eu e Dom Helder fomos eleitos, e trabalhamos em grande harmonia, embora às vezes pensássemos de maneira diferente. Conheci todos os grandes teólogos do tempo, um Rahner (também estava lá Dom Boaventura Kloppenburg), participei dos trabalhos da "Gaudium et Spes".
Luiz Paulo Horta: Desse terremoto do Concílio surgiu, naquela época, um modo de falar de correntes quase que opostas da Igreja, progressistas, conservadores, coisas desse gênero. O Senhor acha que hoje ainda existe esse choque?
Dom Eugenio: Matizado, mas ainda existe. Acho que os maiores perigos da Igreja não vêm de fora, mas de dentro da Igreja. Paulo VI já tinha sofrido muito com isso. Esta situação mudou bastante. Agora surgem problemas novos, o do aborto, da camisinha, do celibato; naquele tempo era mais o problema social, cujas ênfases talvez tenham mudado um pouco depois do fracasso do comunismo. Mas é sempre bom lembrar que essas divergências não tocam nos pontos essenciais da doutrina da Igreja, as grandes questões teológicas; eu diria que nesse plano não há divisões. Há divisões quando se fala de coisas que têm a ver com uma visão ideológica, o que talvez decorra do fato de que o Brasil é um país tão grande, tão complexo.
Luiz Paulo Horta: Talvez sejam divergências históricas, não é? Eu me lembro que, na Inglaterra do século passado, parecia haver uma diferença de enfoques entre aqueles dois grandes cardeais, Manning e Newman, este mais místico, Manning mais preocupado com a questão social ...Naqueles anos pós-Concílio, o Senhor teve uma atividade de que agora se tem falado muito, de protetor de pessoas perseguidas pelo regime militar. O senhor fez isso só por caridade cristã?
Dom Eugenio: Foi caridade cristã, mas não é só caridade, é um dever ... O homem é feito à imagem de Deus; então, eu estava defendendo a imagem de Deus. Ao mesmo tempo, eu fui prudente, nunca um militar fez cara feia pra mim, ninguém foi preso, nenhum padre ou leigo que trabalhava comigo.
Luiz Paulo Horta: O Senhor tem sido um colaborador muito próximo de João Paulo II. Na sua opinião, o que esse papado significou para a Igreja?
Dom Eugenio: É difícil dizer, como acontece em relação às coisas grandes demais. Recentemente, eu estava escrevendo um artigo relativo à Independência, em que faço uma referência a idéias de pátria, nação, estado, e ali eu digo: esse papa é o único homem no mundo de hoje que é uma referência. Referência em tudo: para os cristãos, para os chefes de Estado, até para os que não têm fé.
Luiz Paulo Horta: Mas em termos de vida da Igreja?
Dom Eugenio: Um aspecto interessante é o aspecto cultural, que já vinha de Paulo VI. A cultura tem uma linguagem que ultrapassa as diferenças religiosas. Fatores como a dignidade humana são religiosos, claro, mas não só religiosos. Outro aspecto é a maneira como o papa se relaciona com a juventude ... Você viu o que aconteceu em Paris? Jamais a cidade tinha reunido tantos jovens ... E aquilo quem fez não foi a Igreja da França ... Aí é que percebemos a força do papa. Ele convoca os jovens, e eles vêm. Porque ele acredita na juventude.
Luiz Paulo Horta: Pensando em termos do pontificado de João Paulo II, talvez se possa dizer que este foi um período em que a Teologia da Libertação chegou a aparecer como um problema. Era um problema ou ainda é?
Dom Eugenio: Foi um problema, do modo como foi colocado. Curioso que isso é visto como uma coisa que Roma abafou; mas a reação veio daqui, desta arquidiocese. Leonardo Boff apelou daqui para Roma; portanto, não foi Roma que o chamou. Achei que, como bispo daqui, a responsabilidade era minha. Foi a comissão de doutrina da arquidiocese que examinou um de seus livros, e foi então que ele apelou para Roma. Eu tenho muita pena que isto tenha se passado assim. O problema continua, mas agora se manifesta de outras formas. Ao mesmo tempo, tem uma Teologia da Libertação que vem da própria Igreja ... Esse papa, por exemplo, se há um homem dentro dessa linha, é este ...
Luiz Paulo Horta: Quando ele diz, por exemplo, "Não tenham medo!", isso é um fantástico apelo à liberdade, não é ? Outra pergunta: a Igreja católica convive hoje com outras confissões religiosas. Isso é uma coisa um pouco nova em relação a um quadro antigo, tradicional, de Brasil católico. É mais difícil de administrar, esta situação nova?
Dom Eugenio: Para mim, não, mas é certamente diferente do que havia antes. Nós temos tido contato com representantes de outros credos, sobretudo os protestantes; acho que a situação ficou até mais tranquila. Eu recebo várias cartas de protestantes, de pastores, judeus também ... Então, por um lado, ficou mais fácil. Quando o papa veio para sua última visita, houve notícias publicadas de grupos cristãos que estavam se preparando para combater essa influência, essa presença. Imediatamente vieram aqui outros pastores para dizer que não estavam de acordo com isso, que não pensavam assim ... e terminamos rezando juntos aqui, neste salão, de mãos dadas, eram seis ou sete pastores...Eu não tenho maiores dificuldades com os protestantes, pelo contrário, acho que temos caminhado lentamente no sentido de um melhor entendimento. Seria preciso caminhar mais ... mas essas coisas são tão arraigadas, que não são fáceis.
Luiz Paulo Horta: Como é que o Senhor vê essa questão do movimento carismático, do padre Marcelo? Há quem diga que isso pode resultar numa banalização da mensagem cristã...
Dom Eugenio: Acho uma coisa muito positiva, porque a gente tem de saber distinguir as coisas, ver os caminhos por onde Deus age. Eu sei que causa susto, mas causa susto porque as pessoas não estão preparadas para entender aquilo... Por exemplo, chamar de showmissa ... Show é uma coisa, missa é outra... No começo eu também fiquei um pouco perplexo, mas tive a coragem de esperar ... Excessos pode haver, gente que chega e diz: o Espirito Santo me disse isso, disse aquilo; mas isso não é o movimento carismático em si. Existe o carisma, mas é preciso haver também o discernimento do carisma, e isso é feito pela autoridade eclesiástica...Acho que tudo isso é uma graça de Deus, é um dom para a nossa época, contanto que não se caia em excessos.
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