"Eles não vencerão, a Igreja vencerá", exclama o cardeal e arcebispo emérito do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales. No auge dos seus 86 anos, tendo sido 30 deles à frente da arquidiocese carioca, ele demonstra um vigor permanente em sua fidelidade à Igreja e afirma que ela vai superar dificuldades, como a onda de indiferentismo e preconceito da mídia em relação ao Papa Bento XVI.
Com a experiência de ter colaborado na elaboração dos documentos do Concílio Vaticano II, participado de vários Sínodos dos bispos e atuado em diversas Congregações da Santa Sé, o cardeal afirma que os que querem o bem da Igreja e do Brasil precisam ter coragem de dizer que o "sim" é "sim" e que o "não" é "não".
Nessa entrevista, Dom Eugênio revela bastidores de sua missão apostólica, como o fato de ter se reunido com bispos cubanos numa sala ao som dois aparelhos barulhentos, devido à suspeita de escutas escondidas.
Com os ares da Igreja no Brasil tomados pela expectativa da visita do Papa Bento XVI e da realização da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, o cardeal se alegra por estes encontros e espera um grande êxito para os trabalhos a serem desenvolvidos.
cancaonova.com: Como surgiram as Conferências Episcopais da América Latina (CELAM)?Dom Eugênio Sales: Já no Concílio da América Latina, que aconteceu em Roma, no ano de 1899, foi sugerido que houvesse reuniões periódicas de bispos. O Brasil fez essa reunião e Dom Helder Câmara foi o secretário. Essa foi a primeira reunião episcopal de cada país, mas ainda não era o CELAM. Este órgão foi criado no Rio de Janeiro (RJ) durante as reuniões feitas pelos arcebispos no Palácio Episcopal São Joaquim. Nessa reunião foi preparado tudo para a criação da Conferência Geral da América Latina e do Caribe a fim de colocá-la em prática. Os bispos sentiram a necessidade, porque verificaram como eram complexos e graves os problemas do continente latino-americano, pois somos quase que a metade da população católica do mundo. Havia nesses países dificuldades, como o crescimento do secularismo e a diminuição do fervor religioso, ou seja, muitos problemas que a Igreja ou um país sozinho não poderiam resolver.
cancaonova.com: Quais os benefícios que o CELAM trouxe para a Igreja?
Dom Eugênio Sales: Trouxe muitos, porque os países são isolados, mas há problemas que são comuns, como os de catequese e os de invasões das seitas. É muito mais fácil de se agir contra tudo isso depois que se coloca em comum a experiência de cada um. A ação toma muito mais força quando não é realizada só num país, mas em todo o continente. É bom ter em mente a idéia e a importância dessa reunião porque há problemas que são semelhantes, mas muitos deles exigem soluções diferentes.
O CELAM é um órgão que não manda nas dioceses, mas sim, que oferece um serviço a elas. Ele promoveu muito mais a fraternidade entre os bispos e facilitou a comunicação entre eles.
cancaonova.com: Qual foi o papel do Concílio Vaticano II no começo destas conferências?Dom Eugênio Sales: A reunião de Medellín veio com o objetivo explícito de aplicá-lo [o Concílio Vaticano II] na América Latina. Essa reunião teve toda a base na aplicação dele à realidade latino-americana. Aplicação esta que foi realizada tanto pelos bispos da América Latina como também pelos representantes do exterior. Na reunião de Aparecida virão, com direito a voto, representações dos EUA, Canadá e Portugal.
Havia muitas opiniões a respeito deste [Concílio], por isso todo o material ia para Roma para verificarem o acerto que havia sido entregue a todo episcopado, a cada país. Eu mesmo fui a muitos países para transmitir muitas conclusões obtidas na Conferência de Medellín. Comecei pela Argentina, junto com o então cardeal de Quebec que também tinha essa função.

Fomos a Cuba, ao Chile e os bispos desses países se reuniam conosco, e entregávamos o documento a eles, dando-lhes as explicações que fossem pedidas sobre o Concílio. Em Cuba, fizemos a reunião com dois aparelhos barulhentos para que ninguém pudesse gravar nada, pois não sabíamos se tinha alguém gravando ou se havia escutas na sala. Um ventilador e um refrigerador foram colocados na sala para atrapalhar a conversa. Conseguíamos nos comunicar bem, mas o barulho prejudicaria as gravações, caso houvesse alguma.
cancaonova.com: O senhor sentiu medo?Dom Eugênio Sales: Não. O incômodo era que tiravam fotografias demais antes de entrarmos em Cuba. Quando eu saí desse país, o governo do México não me queria lá porque não me davam visto. Fiquei esperando em solo cubano uma companhia que confirmasse que eu poderia embarcar. No entanto, o passaporte brasileiro não era válido nesse país, então eu fui para o Ministério de Relações Exteriores e expliquei quem era e o que fazia lá. Eles resolveram colocar outro carimbo, pois o que eu tinha não era válido. E quando nós chegávamos ao Brasil, sempre olhavam os passaportes que tinham o carimbo de Cuba.
cancaonova.com: A partir da sua experiência, como o senhor analisa o tema dessa V Conferência: "Discípulos e missionários de Jesus para que n'Ele os nossos povos tenham vida"?Dom Eugênio Sales: É uma continuação e um reforço do espírito missionário, pois este diminuiu muito na Igreja. Ela cuida do homem todo, ou seja, do seu corpo e alma. O nosso trabalho social, que precisa ser intenso, deve ser em decorrência da doutrina do Evangelho, não de partidos políticos. Qualquer ideologia – que possa promover o homem – não é a que vai nos orientar, pois o nosso trabalho social é feito como conseqüência da doutrina social da Igreja, doutrina esta que é parte integrante do ensinamento dessa instituição.
Eu não estarei nessa conferência porque tenho mais de 80 anos, mas vamos todos nos encontrar com o Santo Padre na cidade de São Paulo para uma reunião que ele fará na Catedral da Sé com os bispos do Brasil.
É importante termos em mente a relevância dessas reuniões, porque há muitos problemas que são semelhantes, mas exigem soluções diferentes. Há muitos países que têm problemas por influência de outros países.
cancaonova.com: Para o senhor, que acompanhou todas as conferências, qual será o maior destaque que a 'V Conferência' trará para a América Latina de hoje?Dom Eugênio Sales: Alguns problemas são normalmente tratados nesses encontros, como a deficiência do clero e como enfrentar a pobreza sem se perder de vista a orientação da Igreja. Esses temas normalmente entram na pauta das conferências, porque atingem todo o continente. Outro problema bastante discutido é a paz. Portanto, tudo aquilo que envolve a divisão deve convergir para a comunhão.
Desde o pontificado do papa Paulo VI, os Santos Padres têm participado de todas as reuniões na América Latina.
Bento XVI se prontificou a vir ao Brasil, não pelo país em si, mas porque, aqui, realiza-se toda a América Latina. Então, ele vai passar dois dias na cidade de São Paulo (SP), e todos os bispos estarão com ele para ouvir suas orientações.

O que eu acho de importância vital é a disposição dele para cumprir toda a programação durante o tempo em que estiver aqui. Cristo constituiu a Igreja e a colocou sobre um alicerce, fazendo dele a cabeça do corpo místico d'Ele. Então, não nos cabe questioná-la, apenas aceitar aquilo que é decidido, aquilo que o Papa determinar. Quando ele foi eleito, muitos diziam que ele era "isto e aquilo", mas pensaram o contrário do que ele tem se revelado, exatamente o oposto. Fiquei muito feliz porque eu o conhecia e já havia trabalhado com ele, aqui, no Rio de Janeiro. Nós, brasileiros, devemos muito a ele porque já foram realizados quinze cursos para bispos aqui no País. O então cardeal Ratzinger foi o primeiro a fazer essas reuniões aqui, e na última que fizemos foram 126 inscritos, e 100 bispos participaram. Poucos episcopados, no mundo inteiro, têm esse número de bispos.
cancaonova.com: Quais foram os benefícios da visita do Cardeal Ratzinger ao Brasil naquela época?Dom Eugênio Sales: A primeira parte é a da
doutrina de que ele tratava, pois era um homem de renome internacional. Depois foi muito bom porque ele conheceu mais a fundo o episcopado do Brasil, que, aliás, foi muito carinhoso com ele.
Na semana anterior ao conclave, nós passamos a semana em reunião, e foi ele quem a presidiu. Esse contato que ele teve com o episcopado do mundo todo foi uma coisa muito boa. Eu acho que a dificuldade que ele levanta é que a Igreja é a Igreja, isto é, não somos nós que a fazemos, nós apenas entramos nela. Ela é feita por Jesus Cristo e orientada por Ele por intermédio dos homens, e, no caso, é o Santo Padre quem a representa. Então, eu não vou discutir as coisas que vêm de Roma, porque acho que isso é falta de bom senso. Ninguém me obrigou a ser padre, então eu não posso reclamar de nada. Não me ordenei para agradar a mim mesmo, mas para servir a Jesus Cristo. Aborto, por exemplo, é não, sempre não! Então, se a doutrina é essa, ninguém pode discutir.
É falta de bom senso querer ser católico e, ao mesmo tempo, não pertencer àquela estrutura que foi fundada por Jesus Cristo, embora seja humana e tenha falhas, – falhas essas que não são de Jesus Cristo –, estas nunca afetam aquilo que é fundamental da Igreja.
cancaonova.com: Como o senhor acompanha o pontificado de Bento XVI?Dom Eugênio Sales: O pontificado de Bento XVI é a continuação e a adaptação do de João Paulo II. É interessante observar que nos primeiros meses de seu pontificado, Bento XVI nunca falava apenas o nome de João Paulo II, mas sempre utilizava adjetivos para se referir a ele, como "bem-aventurado" João Paulo; sempre havia um elogio. O caminho dos dois é o mesmo, o que varia é a questão de que João Paulo II era um atleta e um homem de teatro e comunicação. Já Bento XVI é um alemão, tem um temperamento totalmente diferente, mas tem uma bondade muito grande.

Pensava-se que iria diminuir o número de fiéis no Vaticano, pois João Paulo II tinha um "imã" que atraía aquela população católica e não-católica do mundo todo. Por isso pensava-se que ao entrar um outro Santo Padre, aquilo tudo diminuiria. Mas é impressionante como o número de pessoas aumentou. No dia em que ele foi eleito, Roma recebeu uma outra Roma em número de habitantes. Tanto que, naquele dia, duas cidades do mundo já tinham convidado o prefeito de Roma para falar sobre a organização de tudo aquilo. É incrível que essas coisas não aparecem, somente as que não existiram ou que não têm nenhum sentido. Mas isso aconteceu com Jesus Cristo, por isso, eu sempre digo: quando acontece algum problema, há uma garantia. Eles não vencerão, a Igreja vencerá. Ela venceu dois mil anos e continuará vencendo porque ela vai continuar, pois está edificada sobre uma pedra, e essa pedra, que é Jesus Cristo, sobre a qual o Papa fala, deve ser obedecida.
cancaonova.com: Fale-nos um pouco de sua amizade com o papa João Paulo II.Dom Eugênio Sales: João Paulo II e eu trabalhávamos juntos no documento
"Gaudium Et Spes", que era uma comissão mista. Dom Helder e eu fomos eleitos para a comissão que era da Pastoral do Leigo. Na Comissão de Doutrina, quem cuidava desse documento [
Gaudium Et Spes] era um brasileiro, dom Odilo Scherer. João Paulo II ainda era cardeal e, nas reuniões, ele ficava na minha frente. Depois, quando ele foi eleito Papa, eu fui à Polônia só para ver onde ele nasceu e viveu. Eu passei uma semana lá, porque eu tinha duas reuniões. Fiquei hospedado no local onde era a casa dele. Foi uma bênção extraordinária.
cancaonova.com: Deixe algumas considerações para a população a respeito da vinda de Bento XVI e também da sua expectativa para a 'V Conferência Episcopal'.Dom Eugênio Sales: A expectativa que eu tenho é muito boa. Espero um grande êxito em Aparecida e peço uma grande bênção para o Brasil, pois, pelos meios de comunicação, todos poderão participar, assim como o mundo inteiro participou da morte e do sepultamento de João Paulo II.
Nós devemos estar preparados para a vinda do Sumo Pontífice, recordando os ensinamentos que foram dados por João Paulo II e Paulo VI. Colocá-los em prática será a melhor maneira de nos prepararmos para essa visita, porque assim nós estaremos dispostos a acolher e a corresponder ao grande sacrifício que ele faz numa viagem tão longa.
Eu estou felicíssimo com o andamento das coisas para vinda de Bento XVI. E quem não está feliz, não está de acordo com o Papa. Então, nós respeitamos e rezamos.
Obrigado a todos, continuem trabalhando para o bem da Igreja e para o bem do Brasil, mas para isso é preciso ter coragem de dizer que o 'sim' é o 'sim', e que o 'não' é o 'não'.
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