segunda-feira, 4 de julho de 2011

A lição do cardeal

Dom Eugênio Salles sai da
arquidiocese do Rio de Janeiro
para entrar na História

Mario Sabino


Antonio Ribeiro
Dom Eugênio: sem medo dos generais e do baixo clero que o patrulhava


Há dois tipos de homens: os que mudam de convicções no decorrer da vida e os que carregam até o fim as certezas adquiridas ainda na juventude. Tanto no primeiro como no segundo caso, isso pode ser um defeito ou uma qualidade. Depende da forma como se encaminha a vida. Ao contrário do que se acredita, posicionamentos intelectuais e espirituais não existem autonomamente – têm de ser validados pelas atitudes concretas que se tomam no dia-a-dia. Feitas as contas, não há como negar que dom Eugênio de Araújo Salles, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, fez das certezas pétreas a sua maior qualidade. Aos 80 anos, ele se retira de cena com um belo verbete a ser registrado na História brasileira. Será substituído no comando da arquidiocese carioca por dom Eusébio Oscar Scheid, de 68 anos, arcebispo de Florianópolis até ser escolhido pelo papa João Paulo II para a nova função.

Sem almejar a unanimidade de que gozam os santos (ao menos, os santos antigos), dom Eugênio teve a coragem de dizer um rotundo "não" a uma idéia fora do lugar que permanece popularíssima no baixo clero latino-americano: a Teologia da Libertação, que adicionou ao sangue de Cristo o vermelho da bandeira comunista. Não era fácil fazê-lo no auge da ferocidade da ditadura militar brasileira, quando a tentação marxista parecia ser a resposta ao autoritarismo de inspiração fascista. Leia-se o que ele declarou em 1970, na condição de arcebispo de Salvador e primaz do Brasil: "Existe um esforço inteligente e organizado para difundir a doutrina marxista, utilizando todos os meios, inclusive ilícitos, como a interpretação errônea de documentos da Igreja". Em seguida, acrescentou, para não deixar dúvida de que lado estava: "É certo que há uma fobia do comunismo e não é raro constatar-se que esse espantalho é utilizado para fins escusos, inclusive o de impedir as necessárias transformações sociais ou de intitular de marxismo o que é o Evangelho autenticamente interpretado. Devem estar atentos os católicos com o movimento denominado Tradição, Família e Propriedade, que não conta com a aprovação e o apoio da arquidiocese".

Dom Eugênio, desde sempre, esteve do lado de Deus – o da Igreja Católica, Apostólica, Romana, à qual jurou fidelidade quando se ordenou, em 1943. Mas seus detratores de esquerda, com ou sem batina, irritados com sua eqüidistância em relação aos extremos políticos, resolveram colocá-lo em seu inferninho ideológico particular. Tanto que, quando foi nomeado arcebispo do Rio de Janeiro, em 1971, dezenas de padres cariocas (padres de passeata, diria o escritor Nelson Rodrigues) recusaram-se a comparecer à sua posse. Imprimiram-lhe o rótulo de "conservador intransigente" – como se os cardeais, todos, não o fossem –, um eufemismo por aqui usado quando se queria chamar um integrante da Santa Madre de apoiador dos desmandos do regime militar. Esqueceram-se, ao modo stalinista, bem entendido, de que o "reacionário", sem alarde, salvava a vida de perseguidos políticos – mais de 5.000 deles, entre brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios –, denunciava, com barulho, a tortura de presos comuns e, embora mantivesse os canais de comunicação abertos com os generais-presidentes, recusava-se a receber honrarias dessa gente.

Dois fatores externos à sua biografia contribuíram para dom Eugênio aposentar-se na condição de o maior cardeal que a Igreja brasileira já produziu. O primeiro foi a redemocratização do país, que diminuiu naturalmente o papel de religiosos como dom Paulo Evaristo Arns e dom Luciano Mendes de Almeida, ambos de grande carisma, mas que sobressaíram menos pelo seu trabalho pastoral que por seu empenho político. O segundo, a intervenção no clero nacional por parte de João Paulo II, que arou com sal o terreno onde vicejava a festejada "ala progressista". Afinadíssimo com o papa polonês em questões de doutrina, dom Eugênio tornou-se a voz do Brasil no Vaticano e o xerife do Vaticano no Brasil. Sua influência em Roma sempre foi maior que a do hoje adoentado dom Lucas Moreira Neves. Mais de uma dezena de bispos foram nomeados graças a ele, o que ajudou a mudar o panorama da Igreja brasileira, hoje menos partidária e esquerdista. Em 1980, demitiu sem pestanejar 29 professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, porque eles faziam pregação marxista. Injustiça ou coerência? "Para os culpados, o castigo é um ato de misericórdia", afirmou a respeito do assunto. Coerência, portanto.

A importância de dom Eugênio é tamanha que ofusca seu lado folclórico – o de querelar com sambistas e autores de novelas. O paradoxal é que ele se aposenta sem conseguir fazer o sucessor. Queria ser substituído por seu bispo auxiliar, dom Karl Romer. Mas talvez tenha pesado contra a indicação o fato de Romer ser suíço. Um estrangeiro na chefia de uma das principais arquidioceses do país poderia soar como ofensa aos prelados brasileiros, já tão vigiados pelo Vaticano. Dom Eusébio Scheid, que está para ser nomeado cardeal, não parece ter uma personalidade forte – e as reportagens sobre ele publicadas até o momento não ajudam a mudar essa impressão. Consta que gosta de nadar, assistir a jogos de vôlei e de ultrapassar o limite de velocidade nas estradas. Dom Eusébio também falou platitudes sobre política, azeitadas por repórteres sequiosos de notícias interessantes. Se será um grande arcebispo ou não, só Deus sabe. Guardadas as devidas e imensas diferenças, o italiano Angelo Giuseppe Roncalli mais parecia um pároco de aldeia quando foi eleito papa. Passou à História como João XXIII.

Sergio Dutti
Lourival Ribeiro
Orlando Brito
Luciano Mendes de Almeida, Paulo Evaristo Arns e Lucas Moreira Neves: eclipsados pelo "reacionário"

Nenhum comentário:

Postar um comentário