quarta-feira, 18 de maio de 2011

A arquitetura do Carmelo Descalço

Mosteiro S. José de Ávila
Durante muitos anos houve um intenso debate historiográfico sobre a pertinência ou não do termo "arquitetura carmelitana", debate extensivo também ao caso de outras ordens religiosas. Dita polêmica confrontava os que defendiam a existência de um estilo arquitetônico carmelitano que se concretizou na igreja do convento da Encarnação de Madrid, e os que se opunham a esta ideia, argumentando que no conjunto de edifícios dos carmelitas Descalços erigidos na Espanha, Portugal e México durante os séculos XVI e XVII não existia uma aspiração artística ou uma vontade clara de estilo arquitetônico, senão uma mera sujeição aos desejos de pobreza e simplicidade expressos por Santa Teresa em suas Constituições e coincidentes, ademais, com a austeridade reclamada por outras ordens reformadas; uma simplicidade que, mesmo assim, ia sendo relaxada paulatinamente, até desvirtuar-se por completo desde meados do século XVII, com a proliferação de ornatos supérfluos e a adequação dos novos edifícios aos ditados do gosto barroco.

Em 1990, o documentado estudo de José Miguel Muñoz Jiménez quis dirimir este debate a favor da primeira postura, estabelecendo a respeito que "se dão as suficientes circunstâncias como para fundamentar um modo clássico seguido com decisão na maior parte das fábricas da Ordem. O resto se levantaram de acordo com os estilos e modas experimentados na arquitetura espanhola da idade moderna. Esta dicotomia construtória nos levará a falar, por um lado, de arquitetura carmelitana, e, por outro, de arquitetura dos carmelitas". O problema historiográfico estaria resolvido, reduzindo a questão de estilo a uma questão de modo e adotando, portanto, uma solução similar à relacionada com a atividade de construção de outras ordens religiosas.

No capítulo 8 das Constituições dadas por Santa Teresa em Salamanca em 1581, a autora expressou claramente um desejo de simplicidade e moderação que resultaria essencial para a arquitetura do Carmelo e sobreviveria nas sucessivas revisões realizadas no texto durante o século XVII. Em seu escrito, a santa estabeleceu que "a casa jamais se lavre, senão a igreja, nem haja coisa curiosa, senão tosca de madeira; e a casa seja pequena e as peças baixas; coisa que cumpra à necessidade, e não seja supérflua. Forte o mais que puderem, e a cerca alta e campo para fazer ermidas onde se possam retirar-se para a oração, como o faziam nossos padres".

Alguns meses depois, nas Constituições do Capítulo de Alcalá, insistirá Santa Teresa em que "nossas casas não se lavrem com edifícios suntuosos, senão humildes, e as celas não serão maiores de dois passos em quadro" (I,II). Poucas, porém concisas palavras para enunciar todo um programa de ascetismo edificativo, baseado na desnudez arquitetônica, em estruturas humildes, porém harmoniosas, na concentração espiritual, nos espaços reduzidos e nos âmbitos propícios à meditação e ao vôo místico, incluindo uma série de ermidas dentro da cerca, para possibilitar o retiro e a oração solitária das monjas, tal como estipulavam as regras fundamentais da ordem.

Na realidade, Santa Teresa não deu pautas concretas sobre a forma de seus conventos, nem teve intenção expressa de criar um estilo distintivo e assimlável à sua Ordem, quiçá porque ambas as circunstâncias, plenamente mundanas, escapavam aos interesses espirituais e ao entendimento dela e de São João da Cruz. Nas poucas palavras de Teresa não encontramos detalhes precisos sobre a dimensão ou forma das plantas, ainda que suas recomendações eram totalmente claras no relativo ao modo e à atmosfera que queria lograr para propiciar a calma e o sossego espiritual nos recintos de sua ordem reformada; fatores todos eles que, em conjunto e sem propor-se-lhes conscientemente, incidirão na criação de uma tipologia arquitetônica ou estrutura profunda contida nos diversos modelos de conventos carmelitanos.

Movida por seu sentido prático e resolutivo, tantas vezes posto de manifesto ao largo de sua vida, Santa Teresa enuncia de um modo natural - sem intenção culta - as três categorias fundamentiais da arquitetura, definidas por Vitrubio na antiguidade e desenvolvidas modernamente por Leon Battista Alberti. Bem entendido que a santa de Ávila não fez um desenvolvimento teórico da famosa tríade vitruviana, senão que se limitou a ditar umas normas básicas essenciais para o desenvolvimento da vida monástica do Carmelo Descalço, cujo conteúdo coincide no fundamental com as famosas categorias.

Em primeiro lugar, Teresa foi taxativa quanto à firmitas ou solidez de suas casas de religião, especificando que fossem "fortes o mais que puderem" e que os trabalhos de lavra ou serralheria se reservassem só para as igrejas dos conventos, tal como convinha à sua dignidade espiritual e ao moderno conceito de decoro vigente nos finais do século XVI.

Com relação à utilitas, segunda das categorias vitruvianas, Teresa também se mostrou clara e concisa, estabelecendo uma estreita realação de dependência entre forma e função, e entre esta e a mais estrita necessidade. Tudo o que não fosse indispensável e útil à vida monástica, ou seja, todo o supérfluo, estava sobrando em seus conventos, pois atentava contra o recolhimento e o sossego imprescindíveis para desenvolver qualquer experiência de tipo espiritual, desde a simples oração, até o arrebatado êxtase. Santa Teresa rechaça as coisas curiosas que movem à distração e rechaça também os luxos e as comodidades banais, pedindo que a casa seja pequena e as peças baixas.

O tema das tápias ou muros exteriores dos recintos conventuais adquirirá especial importância durante o desenvolvimento da cidade moderna, tanto desde o ponto de vista urbano, como estético. Com respeito ao urbano, o muro definia, protegia e isolava do exterior todo o âmbito interior do convento, que, com excessão da igreja, considerava-se em sua totalidade, zona de clausura, incluindo como tal, não só as celas e outros lugares fechados para a vida das religiosas, senão também as hortas e os espaços abertos ao ar livre e compreendidos dentro do muro. Por definição, a clausura era absolutamente inviolável, inclusive de olhares curiosos. Por isso Teresa recomenda que as separações sejam elevadas, a fim de evitar que, das janelas ou outros lugares se pudesse perturbar o isolamento das monjas. Todas as recomendações de Santa Teresa se cifravam em uma só, que resumia também o espírito da ordem reformada, e foi repetida por ela em várias de suas fundações: "que todos os mosteiros fossem pobres". Do ponto de vista arquitetônico, e sem faltar á dignidade e ao decoro, à continitas (beleza e harmonia), devidos a uma casa de religião, dita pobreza obedecia à aceitação da austeridade tridentina auspiciada pela contra-reforma católica, que a própria santa subscreveu em sua reforma do Carmelo. Neste sentido, e como bem assinalou Antônio Bonet, a arquitetura carmelitana se antecipa à severidade do El Escorial, edifício contra-reformista por excelência. Mas além de qualquer debate historiográfico, é evidente que Santa Teresa deu as pautas necessárias para que seus conventos chegassem a adquirir um caráter ou modo essencial e distintivo.
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Real Mosteiro da Encarnação de Madrid

Suas primeiras fundações tiveram lugar em casarões adquiridos ou doados por algum nobre. Pouco a pouco, no entanto, foi abandonando-se a este costume e começaram a surgir os primeiros edifícios conventuais de planta nova, cenóbios que podemos denominar teresianos - mais que carmelitanos - e que foram fundados pela própria santa e, desde o ponto de vista arquitetônico, refletem claramente seu desejo de materializar um ideal construtivo baseado no intimismo religioso e em uma simplicidade similar à "pequena hospedaria de Belém", segundo definição de seu amigo e conselheiro São Pedro de Alcântara. Estas modernas "casitas de Nazaret", segundo outra afortunada expressão do mesmo santo, dispunham de templos muito simples, tanto em seu espaço interno (de uma só nave, com ab´badas lisas e muros encalados), como em sua fachada, extremamente austera e funcional e composta por uma porta de acesso, um nicho com a imagem do titular, uma janela alta para iluminar o coro e um frontão triangular como arremate, parapeitando assim o simples telhado a duas águas da única nave. O modelo, que já tinha sido definido na Baixa Idade Média pela orem franciscana, encontrou um desenvolvimento especificamente carmelitano mediante as regras ditadas em 1594 e, sobretudo, em 1600 pelos padres gerais da ordem. Estes iniciaram então um processo de homogeinização da arquitetura carmelitana destinada a controlar a construção de novos contentos mediante o estabelecimento de um modelo ou traço universal, que ficaria definitivo, em seus traços fundamentais, em 1605, no desaparecido convento de Santo Hermenegildo de Madrid, casa central da Congregação da Espanha.

Desde então, o traçado da igreja se imporá como modelo obrigatório para o Carmelo Espanhol: planta de uma só nave (sem capelas nem nichos laterais) e alçado interior de pilastras de ordem toscano, com côro alto aos pés, que originava um nártex ou pórtico sobcoro, cúpula cega na capela maior e testeiro reto.

Depois de São José de Ávila, o mais simples dos mosteiros teresianos, e muitos outros conventos e mosteiros, a arquitetura carmelitana atinge seu ápice na obra de Frei Alberto da Mãe de Deus, que construiu o mosteiro da Encarnação de Madri em 1600. O mosteiro originalmente deveria abrigar um Carmelo, por desejo da realeza, mas, pela relutância dos frades, que temiam a interferência na vida claustral das monjas o burburinho do palácio real ao lado, abrigou, como abriga ainda hoje, as agostinianas recoletas

Beatriz Blasco Esquivias

Utilidad y belleza en la arquitectura carmelitana

Anales de Historia del Arte

2004

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