quinta-feira, 7 de abril de 2011

A quaresma na atualidade

Dom Sergio da Rocha, Arcebispo de Teresina - PI

O modo como a maioria das pessoas vive a Quaresma, hoje, é bastante diverso daquele que se observava há um século. O contexto sociocultural de hoje é muito diferente daquele vivido há um século ou há algumas décadas. A vivência da Quaresma tem sofrido transformações decorrentes das próprias mudanças socioculturais ocorridas em nosso meio, que incluem alterações na percepção e vivência da religião, repercutindo na compreensão e nas práticas quaresmais. A própria Igreja promoveu alterações significativas na maneira como se celebra e se vive a Quaresma, especialmente, em relação às práticas penitenciais. A reforma litúrgica revalorizou o Tríduo Pascal, retomando o sentido de recolhimento do sábado, véspera da Páscoa, denominando-o “sábado santo” e não mais “sábado de aleluia”, como muita gente se habituou a chamá-lo, e propondo enfaticamente a celebração solene da Vigília Pascal, na noite do sábado para o domingo da Páscoa. Os dias e as formas de penitência quaresmais também sofreram mudanças. Atualmente, são apenas dois os dias obrigatórios de jejum quaresmal, a quarta feira de Cinzas e a sexta feira santa, permanecendo o caráter penitencial das sextas feiras da Quaresma, com a abstinência de carne. Isso não significa perda ou enfraquecimento do sentido quaresmal. Ao contrário, busca-se, sempre mais, a fidelidade às raízes bíblicas da espiritualidade quaresmal, destacando-se a prática da caridade e da misericórdia, o perdão e a reconciliação, o amor fraterno e solidário, que tornam ainda mais necessárias a oração e a penitência quaresmal, dando-lhes profundo sentido. A prática do amor fraterno, que inclui a convivência entre as diferentes pessoas e o perdão, exige muitas vezes renúncias, pressupõe sacrifícios, que constituem a penitência que mais agrada a Deus e cujos frutos perduram na vida após a Quaresma. No Brasil, desde 1964, a Igreja desenvolve, a cada no, a Campanha da Fraternidade centrada num tema específico, não para substituir a Quaresma, mas como uma forma de vivê-la mais intensamente, através de gestos concretos de amor fraterno, de solidariedade e partilha. Em meio às mudanças culturais e religiosas, permanece o sentido maior da Quaresma, enquanto tempo de preparação para a Páscoa da Ressurreição de Jesus por meio da oração, da penitência e da caridade.

Não é justo afirmar que ninguém mais vive o tempo da Quaresma. Há muita gente que vive de modo consciente e zeloso o tempo quaresmal, principalmente, em função da formação religiosa recebida em casa, na escola ou na comunidade. Além disso, no cenário cultural e religioso brasileiro perduram tradições da piedade popular ligadas à Quaresma, ricas de beleza e significado, que merecem ser devidamente valorizadas, preservadas e vivenciadas. Ignorar ou menosprezar tais expressões religiosas significa desconhecer e desvalorizar a própria identidade de nosso povo. Contudo, as tradições populares da Semana Santa não podem ser reduzidas à manifestação folclórica ou a espetáculo a ser assistido, por mais belo que possa ser. É certo que elas compõem, de modo essencial, a identidade cultural de nossa gente, devendo ser preservadas como tal, mas as manifestações da piedade popular ou as celebrações litúrgicas da Semana Santa se apresentam como ocasião especial para a experiência de Deus, para o crescimento e o fortalecimento da fé pela oração, para a reflexão sobre o sentido da vida, do sofrimento humano e da morte, através da contemplação da paixão e morte de Jesus Cristo na cruz e da celebração da sua vitória pascal. Importa refazer a experiência de seguir os passos de Jesus rumo ao Calvário para chegar com ele à vitória sobre a desesperança, o pecado e a morte, celebrada solenemente em comunidade na Páscoa. Embora haja práticas da piedade popular de índole mais pessoal, a maioria das manifestações e as próprias celebrações litúrgicas realizadas pela Igreja são de caráter comunitário, favorecendo a proximidade entre as pessoas e a vivência do amor fraterno, que estão no coração do Evangelho. Gente, muita gente, caminhando juntos, rezando, celebrando e festejando juntos. Que esta Quaresma e a Páscoa que se aproxima sejam oportunidades para se reavivar a experiência da fé e do encontro com Deus, para reconciliar e unir as pessoas, na liturgia e na vida.

(artigo publicado no jornal Meio Norte, de Teresina, 02/04/2011).

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